
Não sei você, mas ultimamente tenho achado que estou trabalhando muito. Antigamente as pessoas tinham expediente, entravam às oito, saíam às dezoito, tinham hora para almoçar e intervalo para o lanche. Eu me lembro desse tempo, meu primeiro emprego foi exatamente desse tipo. E quando eu ia embora simplesmente não pensava no trabalho nem um pouquinho, tratava de viver minha vida. Atualmente não é mais assim, estamos envolvidos com o trabalho o tempo todo, 24 horas por dia, e parece que falta tempo. Será que sou só eu? Acho que não, pois as pessoas com quem convivo são todas assim, plugadas no trabalho.
E dá para entender: antigamente as pessoas trabalhavam mais com os braços e menos com a cabeça. De certa forma, a maioria das atividades lembravam um pouco aquele filme do Chaplin em que ele aperta porcas sem saber o que está construindo. Hoje, a imensa maioria dos trabalhos não tem parentesco com aquele operário do genial Carlitos. Atualmente o que funciona é o pensamento, as ideias, a criatividade, o comprometimento, as paixões. Senão você está fora. E a cabeça não para de funcionar quando termina o expediente. Quase não há mais ‘mão de obra’, o que há é ‘cérebro de obra’.
Tudo isto pode parecer óbvio, mas nem sempre foi. Aliás, essa realidade é supermoderna, pois o homem valeu-se dos braços para produzir durante muitos séculos, desde que existe o trabalho como instituição social. A realidade só começou a mudar mesmo na segunda metade do século passado, quando surgiu a tal ‘sociedade do conhecimento’, em substituição à ‘sociedade industrial’, própria da virada do século 19 para o 20, que já era uma novidade, pois estava substituindo a ‘sociedade feudal’, em que a riqueza era totalmente produzida no campo.
Li certa vez (não me pergunte onde) que um historiador havia dito que sociedade industrial terminou no ocidente em 1956, pois a partir daquele ano, o número de trabalhadores da indústria passou a ser menor do que o número de trabalhadores de outras áreas da economia. E quando lhe perguntaram em que tipo de sociedade estávamos agora ele deu uma resposta pra lá de evasiva: “Estamos na sociedade pós-industrial”. Ora, esse título só diz onde não estamos, mas não define nossa situação atual. Levou algum tempo para que percebêssemos que agora o que valia era o conhecimento e a inteligência para transforma-lo em produtividade. Atribui-se a Peter Drucker a expressão knowledge worker, ou ‘trabalhador do conhecimento’.
Então é isso, trabalhamos com a cabeça e não podemos deixa-la pendurada no escritório, no ateliê, no consultório, no estúdio ou na fábrica quando vamos para casa. Por isso, nosso trabalho é, cada vez mais, parte importante de nossa vida.
Sendo assim, temos que caprichar na escolha do que fazemos, pois nossa atividade profissional se incorpora como uma tatuagem. É difícil de apagar. O que dá para fazer, isso sim, é substituir uma tatuagem por outra, e mesmo assim elas têm que ter alguma coerência estética entre si.
Fazer o que se gosta
Até mesmo se considerarmos o modelo anterior, do respeito ao horário de expediente, devemos refletir sobre ao que nos dedicamos, pois veja: fazendo um cálculo simplista, um trabalhador médio no Brasil tem uma jornada de oito horas por dia durante cinco dias e quatro horas em um dia, o que totaliza 44 horas de trabalho por semana. Em um ano, já descontadas as quatro semanas de férias, a conta chega a 2.212 horas de trabalho. É mais do que dormimos e muito mais do que o tempo que dedicamos ao lazer. Nós, adultos, somos seres que trabalham, não temos como fugir disso. É, portanto, bastante sábio procurar um trabalho que não se torne um fardo, que seja recompensador não apenas pelo salario, mas por outros ganhos. Na atualidade, as duas maiores fontes de sofrimento humano são os problemas de relacionamento afetivo e a inadequação com o trabalho. Como evitar problemas nessa área?
Dizem que foi Confúcio que aconselhou: “Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um dia sequer em sua vida”. Não tenho certeza se este aforisma é mesmo do filósofo chinês que viveu entre 551 e 479 a.C., pois tudo o que sabemos dele é o que se escreveu sobre seus pensamentos após sua morte. Mas essa dúvida não importa nem um pouco, pois que se trata de uma bela frase, isso não podemos negar.
Entre coleções de pensamentos sobre o trabalho, este é um dos mais repetidos, às vezes à exaustação, especialmente para os jovens em início de carreira. Não há dúvidas sobre seu valor, pois é verdade que quando nos dedicamos a alguma atividade que nos dá muito prazer, é óbvio que nos empenhamos mais e nem vemos o tempo passar. Basta observar uma criança brincando ou um casal namorando. Mas será que com o trabalho pode ser o mesmo?
O duro é descobrir que tipo de trabalho poderia nossa dar uma alegria semelhante à de brincar ou namorar e, mais difícil ainda, transformar essa atividade em uma profissão e viver dela. Afinal, quando vestimos, finalmente, roupa de adulto e adentramos ao mundo do trabalho, em geral entramos por uma porta pequena, lá nos fundos, e seguimos por um corredor meio apertado, cheio de pegadinhas reservadas aos neófitos. E aí, como saber se estamos fazendo algo que amamos, ou que podemos vir a amar, apesar de todas as dificuldades?
Lembro que quando era professor de cursinho (já faz tempo…) muitos alunos virem se aconselhar com os mestres sobre as carreiras, cheios de dúvidas e com os olhos assustados. Perto do mês em que se encerram as inscrições para o vestibular, a coisa piora. Mas, o que dizer? Que conselho dar a um garoto de 17 anos que tem que decidir seu destino em uma prova, pela maldade deste sistema de educação? Como faze-lo perceber que uma escolha de carreira não é uma condenação, e sim apenas uma opção que pode ser alterada a qualquer tempo? Não tem muito como se aprender sobre isso, a não ser vivendo. Mas, se há um conselho, este é o de Confúcio.
Gostar do que se faz
As duas grandes motivações humanas são consequência de dois fortes instintos: a necessidade e o desejo. Não queremos sofrer, por isso atendemos às nossas necessidades, e, mais que isso, queremos ter prazer, por isso procuramos atender aos nossos desejos. Por que comemos, pelo menos três vezes ao dia? Porque é uma necessidade. Se não nos alimentarmos passaremos fome, que é um sofrimento. Se não comermos por muito tempo podemos adoecer, e até morrer, o sofrimento derradeiro.
Mas, concordemos, não sentamos à mesa para almoçar, ou jantar, só porque é uma necessidade. Também porque é um prazer. Elaboramos pratos, caprichamos no tempero, harmonizamos a comida com a bebida, escolhemos a companhia. Tudo para aumentar o prazer.
Pois com o trabalho ocorre o mesmo. Por que trabalhamos? Por que é uma necessidade, claro. Para começar, se não trabalharmos não poderemos pagar as contas, o que não deixa de ser um sofrimento, e dos grandes. A rigor, o trabalho nos atende em três necessidades básicas: o mais evidente é o pagamento, que nos permitirá sobreviver, mas não é só. Além disso o trabalho nos faz sentir pertencendo a um grupo, o que é uma necessidade humana imperativa, pois somos animais gregários por natureza. E, por último, mas não menos importante, quando trabalhamos nos sentimos dignos, úteis, integrados ao meio produtivo da sociedade.
Mas não trabalhamos apenas por ser uma necessidade, que busca evitar sofrimentos. Também por que nos dá prazer. Pelo menos deveria dar. Mas, quais são, afinal, as fontes de prazer colhidos no trabalho? Há várias, procure identifica-las em seu cotidiano: o sentimento de estar fazendo algo importante, o orgulho de pertencer àquela organização, a visão de que seu futuro será melhor em função do trabalho que faz, as relações humanas e clima reinante no ambiente de trabalho, o espaço físico agradável, a oportunidade de aprender algo novo e transformar-se para melhor, a sensação de estar se realizando como profissional e como pessoa. E por aí vai. Certamente você vai encontrar outros motivos para justificar porque gosta (ou não gosta) do trabalho que faz e do ambiente profissional em que o desenvolve.
Conforme vemos, há mais motivos relacionados à satisfação de fazer um trabalho do que motivos ligados às necessidades básicas de sobrevivência. Entretanto é bom que se diga que nem tudo serão flores sempre. Para conseguirmos ter prazer de fato em fazer o que fazemos, temos que ter a força interior que nos permite fazer coisas que não são necessariamente, prazerosas.
Lembro de um amigo neurocirurgião que me dizia adorar o que fazia. Seu maior prazer era operar, abrir um crânio e visitar o cérebro do paciente para retirar um tumor, fechar um aneurisma, esvaziar uma cavidade, ou algo assim. Mas para poder fazer isso, ele tinha que fazer coisas que absolutamente não gostava, como atender no consultório, lidar com os medos do paciente, preencher a papelada do plano de saúde, e até coisas piores, como dar uma notícia ruim para a família. “Mas, faz parte”, me dizia ele.
É verdade, faz parte uma grande quantidade de pequenas atribuições paralelas, e não temos como fugir delas. Sim, o segredo da felicidade passa por se fazer o que se gosta, mas também é necessário gostar do que se faz.
Eu, pessoalmente, adoro o que faço. Minhas duas atividades principais são dar aulas e escrever. Junto com essas minhas duas paixões, eu sei, vem um pacotão cheio de longas reuniões, aeroportos cheios, aviões apertados, trânsito congestionado, prazos para cumprir, contratos para examinar, impostos para pagar, e por aí vai. Mesmo assim, adoro o que faço. O que não diminui a sensação de que ando trabalhando demais. Mas que atenua, atenua.
O Eugenio Mussak diz que adora escrever, mas que não gosta dos prazos de entrega. Fazer o que…
Fonte: Site do Eugenio Mussak
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