Não cabe ao consultor realizar a mutação genética necessária, mas isso não significa que ele não possa fazer nada a respeito.
Se a gente perguntar a qualquer executivo sobre a questão da ética na empresa dele, existe uma probabilidade muito grande do sujeito ser capaz de jurar sobre a Bíblia que esse princípio constitui um dos valores mais importantes do negócio (assim como a inovação, a preocupação social e com o ambiente, a valorização do capital humano e blá, blá, blá).
Minha consultoria trata do autoconhecimento da organização, e, não raro, acontece que a preocupação com a ética não está no seu DNA, por mais que seus gestores jurem o contrário (o método não se deixa enganar por discursos bonitos). Mediante evidências, eles acabam admitindo um jeitinho aqui, outro ali…
Sempre digo que ser sincero é mais barato, fácil e eficiente. Mas, e nesse caso, o que fazer? Sair por aí dizendo que é desonesto, que faz negócios escusos, que topa tudo? Às vezes, os deslizes são sérios, apesar de socialmente toleráveis pela sociedade brasileira, como o uso de uma cópia adicional não autorizada de um software, por exemplo. É errado, é crime, todos sabem, mas nem sempre isso quer dizer que a empresa aceite propina e ande metida em negociatas. Há muitos empresários que se acham éticos e honestíssimos, mas sempre pegam a nota fiscal para colocar na conta da empresa quando almoçam com a família. Então, como proceder num caso desses?
Apoiada em experiências diversas, seguem algumas dicas.
Uma vez reconhecida essa particularidade, a empresa tem que definir claramente a postura que vai adotar. Ela pode decidir:
1. acabar com todas as práticas que não possam ser publicamente consideradas éticas e se empenhar em eliminá-las por completo, ou seja, nenhum esqueleto no armário será tolerado; ou
2. definir que algumas práticas não são tão graves quanto outras e admitir apenas deslizes considerados “pequenos”; um ou outro produto/serviço sem nota fiscal, por exemplo, um modesto caixa dois, ou alguns softwares sem licença não serão consideradas preocupações prioritárias; ou ainda
3. não possuir nenhum tipo de escrúpulo, aceitando todo e qualquer comportamento heterodoxo, desde que seja do conhecimento dos gestores e faça parte da estratégia da empresa, como, por exemplo, postos que vendem combustível adulterado ou agências de propaganda que lavam dinheiro de políticos.
Seja qual for a decisão, a empresa tem que estar consciente de que não pode sair por aí dizendo que é ética e enfatizando esse aspecto como se isso fosse um atributo essencial.
No primeiro caso, da empresa que decide não tolerar mais deslizes, o que se define é a manifestação de uma intenção, que pode levar anos até obter algum êxito, principalmente se o “jeitinho” faz parte da sua cultura. E intenção não é fato, nem atributo, muito menos essência.
No segundo caso, basta um olhar mais atento para que se perceba contradições; é o famoso “telhado de vidro”. Não convém chamar atenção demais para o tema. Há que se enfatizar outros atributos, verdadeiros, que o cliente valorize.
Já no terceiro caso, discrição é tudo. Ética deve ser palavra proibida nas comunicações da organização.
Para os cidadãos de qualquer cidade, estado ou país, é importante que todos os empreendimentos sejam modelos éticos e de consciência social. Infelizmente, a realidade é diferente, e não está em poder de um consultor mudar a identidade de uma empresa. Se ela pratica delitos, certamente é por escolha de seus gestores, seja ativamente ou por omissão.
A questão que se coloca aqui é que bandas na favela, corais infantis, campanhas publicitárias geniais, códigos de ética com encadernação caprichada, marketing ambiental ou balanços sociais, nada disso pode contra a força do DNA de uma corporação. Certamente a decisão recomendada por qualquer profissional é a de número um, que prega tolerância zero, mas espetáculos teatrais com maus atores são piores do que nenhum espetáculo.
Assim, não cabe ao consultor realizar a mutação genética necessária (até porque não acredito que exista ainda uma técnica capaz de tal proeza), mas isso não significa que ele não possa fazer nada a respeito. Em situações como as acima apresentadas, a recomendação para a gestão da identidade corporativa da empresa em questão é evitar a qualquer custo a menção à palavra ética ou assuntos relacionados ao tema.
Certamente devem haver outros atributos que possam ser valorizados e enfatizados, focando o posicionamento em um diferencial verdadeiro e que atenda a seu público de interesse (que em algumas ocasiões, inclusive compartilha da mesma, digamos assim, “filosofia de negócios”). Então, por mais paradoxal que pareça, sim, é possível que uma empresa desonesta possa agir com honestidade na gestão de sua identidade corporativa.
Algo assim como ocorre com camelôs que vendem produtos contrabandeados e são pegos em flagrante pela polícia na presença de muitos de seus clientes. Uma vez libertados, lá estão eles vendendo novamente os mesmos produtos, com igual desenvoltura. Problemas com a lei fazem parte de sua rotina e seu público não vai lá pensando em encontrar ética. O foco é o preço e a variedade – uma vez cumprido o trato, as partes saem muito satisfeitas, pois a empresa entrega o que promete. Consumidores de grifes falsificadas são exemplos semelhantes. Para essas empresas, de nada adianta fazer campanhas ressaltando retidão e princípios; não é isso que seduz seus clientes.
Assim, muito cuidado com a ênfase na palavra ética nas comunicações da empresa. Uma vez que a associação é feita, é preciso ter peito para bancar e ter a máxima segurança de que não há sequer uma prática ou ação que contradiga esse atributo. Cliente que quer ética é atento e não perdoa ser enganado.
E infelizmente, no Brasil, esse luxo é para muito poucos.
Ligia Fascioni
Fonte: Revista Amanhã
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