Desde que o uso de informação privilegiada no mercado de capitais tornou-se crime, em 2001, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) analisou 37 casos de possíveis "insider trading". Desses, 26 foram julgados, 21 resultaram em punições administrativas e 11 foram enviados ao Ministério Público Federal (MPF) para que procuradores avaliassem a existência de indícios de crime que pudessem culminar na abertura de ações penais contra os envolvidos. Os demais 11 casos em que a CVM identificou indícios de uso de informação privilegiada não foram julgados porque os acusados celebraram termos de compromisso com a autarquia. Mesmo assim, desses 11 processos administrativos não julgados, 2 foram enviados ao MPF.
O levantamento foi feito pelo Valor com base nas informações enviadas à reportagem pela CVM sobre os processos administrativos já abertos pela autarquia para avaliar possíveis usos de informação privilegiada em operações realizadas no mercado de capitais. Na grande maioria das vezes, os acusados são sócios, administradores de empresas e participantes do mercado - como investidores e bancos de investimento. Em todos os casos, são pessoas e empresas que tiveram acesso a informações sobre fatos relevantes das companhias antes de sua divulgação - como a compra ou a venda de controle acionário, a entrada de um novo sócio, uma reorganização societária ou a reestruturação de dívidas.
O crime de "insider trading" foi criado no Brasil em 2001 com a mudança promovida na Lei das S.A., que alterou também a Lei nº 6.385, de 1976. De acordo com o artigo 27-D dessa legislação, inserido pela Lei nº 10.303, de 2001, incorre em crime de "insider" quem "utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários". Nesses casos, a pena prevista é de um a cinco anos de reclusão e multa de até três vezes o montante obtido de forma ilícita em decorrência do crime.
Embora o crime de "insider" exista desde 2001, nos primeiros anos de vigência da nova lei não houve notícia de processos criminais abertos na Justiça pelo uso de informações privilegiadas. A punição aos responsáveis por esse tipo de infração restringiu-se a multas e advertências aplicadas pela CVM. De acordo com o procurador-chefe da Procuradoria Federal Especializada da autarquia, Alexandre Pinheiro dos Santos, embora os casos em que há indícios de crime sempre tenham sido enviados ao MPF, a linha de atuação da CVM nesse sentido se aprofundou muito desde 2006. "Criamos um 'telefone vermelho' e passamos a nos relacionar rotineiramente", afirma. "Hoje trocamos informações sobre estratégias e passamos a ter um nível de informação mais azeitado, com troca de mensagens por celular até mesmo cifradas."
O levantamento feito pela reportagem demonstra com clareza o aumento da proximidade entre os dois órgãos. Até 2005, nenhum dos processos administrativos julgados pela CVM havia sido formalmente remetido ao MPF, conforme as informações que constam nas decisões da autarquia sobre os casos de "insider trading". A partir daquele ano, no entanto, a situação mudou: foi criado um grupo de atuação no mercado de capitais formado por procuradores federais para discutir ações judiciais que tenham o objetivo de punir responsáveis, seja na esfera cível ou criminal. Na sequência, uma série de casos julgados na esfera administrativa culminou no envio das informações ao Ministério Público para a apuração de eventuais crimes e infrações cíveis.
O marco da nova relação entre CVM e MPF ocorreu em 2007, quando, segundo Pinheiro dos Santos, surgiu a necessidade de uma atuação rápida em um possível caso de "insider". A autarquia havia identificado movimentações atípicas nas ações da Refinaria de Petróleo Ipiranga durante o mês de março e, no dia 17, um sábado, a imprensa noticiou rumores sobre a venda da companhia. Na segunda-feira pela manhã, mesmo dia do anúncio da venda da empresa à Petrobras, Ultrapar e Braskem, feita por meio de um fato relevante, o procurador telefonou para o MPF para que ambos atuassem juntos para pedir o bloqueio de recursos de um possível "insider" em uma medida cautelar na Justiça. "Como o prazo das operações é D + 3 [terceiro dia útil após a operação], fomos a juízo na noite da véspera da liquidação e obtivemos uma liminar", diz. "Na hora em que houve esse primeiro teste, ele causou perplexidade."
Em menos de 30 dias, a CVM e o MPF ajuizaram uma ação civil pública na Justiça Federal do Rio de Janeiro para pedir o ressarcimento dos investidores. A ação, que corre em segredo de Justiça, tem apenas um réu e ainda não foi julgada.
A mesma forma de atuação conjunta entre os dois órgãos se repetiu em seguida, quando a Petrobras adquiriu o controle da Suzano Petroquímica, em agosto de 2007 - operação precedida de movimentações atípicas com ações da Suzano que indicavam um possível "insider". No ano seguinte, a CVM e o MPF celebraram o primeiro acordo conjunto entre as duas instituições - um termo de compromisso e de ajustamento de conduta com a Vailly, empresa uruguaia que teve a conta bloqueada por suspeita de "insider" e que, com isso, conseguiu encerrar uma ação civil pública na Justiça Federal do Rio de Janeiro mediante o pagamento de R$ 2,2 milhões.
Até aquele momento, embora CVM e MPF estivessem em sintonia, ainda não havia sido instaurado nenhum processo criminal por uso de informação privilegiada. Ele surgiu apenas em maio de 2009, quando a Justiça Federal de São Paulo aceitou a denúncia do MPF e abriu uma ação penal contra dois executivos da Sadia e um do banco ABN por terem utilizado informações privilegiadas antes da oferta hostil da Sadia pela Perdigão em 2006. Os executivos da Sadia foram condenados em primeira instância e recorreram da decisão ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, que ainda não julgou o caso. O executivo do ABN fez um acordo com o MPF e foi excluído da ação penal em troca da prestação de serviços a uma entidade filantrópica durante seis meses.
Em fevereiro do ano passado foi aberto o segundo processo criminal por uso de informação privilegiada no país. Seis sócios e diretores da Randon, grupo gaúcho de empresas do setor de transporte de cargas, tornaram-se réus em uma ação penal na qual respondem por crime de "insider trading" ao negociarem ações da companhia e de uma das empresas do grupo - a Fras-le - antes do anúncio da entrada de um novo sócio, a ArvinMeritor, em 2002. Dois dos sócios da Randon, com mais de 60 anos, foram absolvidos porque a acusação contra eles prescreveu. Os demais ainda respondem ao processo na Justiça.
Embora haja apenas dois processos por crime de "insider trading" em andamento hoje, os casos enviados pela CVM ao MPF sugerem que há outros inquéritos em andamento - e que em breve podem se tornar novas ações penais.
Fonte: Valor Econômico
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