Texto de Monica Baumgarten de Bolle para O Globo a Mais.
Publicado em: 22/10/2013
Publicado em: 22/10/2013
“Vejo o mundo como um tipo de Buraco Negro de Calcutá, em que estamos todos nos movendo em meio à escuridão e à lama; de vez em quando, o mero fato de estar no mundo causa uma violenta claustrofobia (ou seria a sensação física de falta de ar, a razão para a sensação de claustrofobia e para a imagem do Buraco Negro?). E, então, percebo que apenas uma fuga desesperada me permitiria respirar; contudo a covardia e a preguiça me impedem de fazê-lo. Quem escapou? Os que sabem, não falam. Os que falam, não sabem.”
A passagem é do aclamado crítico literário britânico Cyril Connolly, falecido em 1974, e autor, entre outras obras, de The Unquiet Grave, publicado sob o pseudônimo Palinurus. O livro, repleto de aforismos, reflexões e citações de clássicos da literatura mundial, é sombrio e mordaz. Escrito em 1944, traça um panorama desolador para a condição humana, reflexo da devastação cultural, socioeconômica e política causada pela Segunda Guerra. É também uma reflexão profunda sobre a perda de ilusão do homem como ser racional e fundamentalmente bondoso…
A cova inquieta é uma boa imagem para um mundo que resiste à aceitação de que a crise financeira internacional encerrou um ciclo e inaugurou outro. Isso é particularmente evidente na discussão que se trava entre gestores de política econômica e os mercados sobre o papel atual dos Bancos Centrais. Há uma enorme relutância em se aceitar que a ilusória separação entre a política monetária e a Política, que prevaleceu entre os anos 1990 e 2008, acabou estrepitosamente há cinco anos. As mensagens codificadas na comunicação das autoridades monetárias, a compreensão puramente técnica da política monetária e de suas implicações para os preços dos ativos perderam importância depois do lamaçal político que resultou da crise. A separação ficou obsoleta. Os destroços políticos e econômicos que o imbróglio fiscal americano deixou em seu encalço ainda serão motivo para muitas idas e vindas dos mercados. Deveriam, entretanto, estar provocando uma autocrítica muito mais forte dos economistas do que se tem visto.
Os economistas são refratários aos destroços políticos. Preferem retratá-los como problemas conjunturais que desaparecerão mais cedo ou mais tarde. Atêm-se, equivocadamente, à ideia de que tudo se resume ao estado da economia. Mas o estado da economia não é indissociável da política. E, após uma grave crise financeira, o esgarçamento social e o desgaste institucional podem ser extremamente severos. Essa é a lição da crise de 2008 para o caso da economia americana, uma lição que não foi aprendida nos anos 30, época da Grande Depressão.
Assim como em 2009 e 2010, a resposta do Presidente Roosevelt à crise de 1929 (ainda que tardia) foi de estimular a economia por meio do aumento dos gastos públicos e de resgatar os bancos que haviam sofrido as consequências do grande crash da bolsa de valores. Os efeitos do New Deal começaram a despontar em 1934, e, entre esse ano e 1938, a economia americana cresceu e a taxa de desemprego caiu. O processo de retomada da atividade foi interrompido em meados de 1937 e, em 1938, ano de eleições na Câmara e no Senado, os Republicanos reconquistaram alguns dos assentos perdidos nos anos anteriores. O partido de oposição, representado pelo líder do comitê orçamentário da Câmara (o “House Ways and Means Committee”), Robert Doughton, acreditava que os gastos do governo estavam fora de controle e que a dívida acumulada nos anos anteriores tinha de ser refreada. A recessão de 1937-38 permitiu que os oposicionistas despontassem, ao abalar a ideia de que as políticas expansionistas de Roosevelt bastariam para garantir a continuidade da recuperação. O panorama político que começava a se polarizar, entretanto, mudou com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Em 1941, quando os EUA entraram no conflito, a Depressão acabou. Com ela, foi-se a fragmentação que se prenunciava e os temores em relação ao aumento da dívida. Afinal, as guerras sempre foram o melhor motivo para que os governos sustentassem dívidas insustentáveis.
Nos anos 30, o desemprego nos EUA alcançou mais de 20%. Não foi assim depois de 2008. Todavia, os dados americanos revelam que se somarmos, hoje, os desalentados – aqueles que saíram do mercado de trabalho, e das estatísticas de desemprego, por não encontrar emprego –, os subempregados e os desempregados, há 14% da força de trabalho em condições precárias. O grau de insatisfação, portanto, ainda é muito alto, passados cinco anos da crise.
As condições precárias de trabalho, associadas ao envelhecimento da população americana e à incapacidade do Estado de acolher esses indivíduos com benefícios generosos, diante da sobrecarga nas contas públicas, aumenta o esgarçamento social. Uma das consequências do esgarçamento social é o surgimento de grupos extremistas, como o Tea Party, que quase conseguiu provocar a primeira moratória dos EUA na semana passada.
O desgaste institucional americano, que o mundo não viu nos anos 30, tem conseqüências nefastas para a economia e para a geopolítica global. Enrascados com as brigas internas que assolam o país, os americanos se isolam. Não são capazes de levar adiante os planos de integrar-se comercialmente com a Ásia ex-China. Desconfiada, a Ásia ex-China se volta para a China. E países altamente instáveis, como a Coreia do Norte, passam a ver os EUA não como um inimigo a ser temido, o que refrearia seus piores instintos, mas como um país à deriva, que não conseguiu sequer fazer jus às suas palavras no conflito da Síria.
Os EUA são, ainda, a maior economia do planeta, um país que goza de um setor privado e, sobretudo, de mercados de bens e serviços e de trabalho muito dinâmicos e flexíveis, capazes de se autossustentar, a despeito das guerras travadas em Washington. Mas é preciso derrubar a falsa impressão de que o que se passa na política americana hoje é apenas uma pedra no percurso, nada mais do que um embate passageiro que não deixará sequelas profundas. Acreditar nisso é incorrer no erro do preguiçoso de Cyril Connolly, na tentação de agir conforme as reflexões de segunda mão. O risco é não perceber o Buraco Negro de Calcutá. Afinal, os que falam, não sabem.
A passagem é do aclamado crítico literário britânico Cyril Connolly, falecido em 1974, e autor, entre outras obras, de The Unquiet Grave, publicado sob o pseudônimo Palinurus. O livro, repleto de aforismos, reflexões e citações de clássicos da literatura mundial, é sombrio e mordaz. Escrito em 1944, traça um panorama desolador para a condição humana, reflexo da devastação cultural, socioeconômica e política causada pela Segunda Guerra. É também uma reflexão profunda sobre a perda de ilusão do homem como ser racional e fundamentalmente bondoso…
A cova inquieta é uma boa imagem para um mundo que resiste à aceitação de que a crise financeira internacional encerrou um ciclo e inaugurou outro. Isso é particularmente evidente na discussão que se trava entre gestores de política econômica e os mercados sobre o papel atual dos Bancos Centrais. Há uma enorme relutância em se aceitar que a ilusória separação entre a política monetária e a Política, que prevaleceu entre os anos 1990 e 2008, acabou estrepitosamente há cinco anos. As mensagens codificadas na comunicação das autoridades monetárias, a compreensão puramente técnica da política monetária e de suas implicações para os preços dos ativos perderam importância depois do lamaçal político que resultou da crise. A separação ficou obsoleta. Os destroços políticos e econômicos que o imbróglio fiscal americano deixou em seu encalço ainda serão motivo para muitas idas e vindas dos mercados. Deveriam, entretanto, estar provocando uma autocrítica muito mais forte dos economistas do que se tem visto.
Os economistas são refratários aos destroços políticos. Preferem retratá-los como problemas conjunturais que desaparecerão mais cedo ou mais tarde. Atêm-se, equivocadamente, à ideia de que tudo se resume ao estado da economia. Mas o estado da economia não é indissociável da política. E, após uma grave crise financeira, o esgarçamento social e o desgaste institucional podem ser extremamente severos. Essa é a lição da crise de 2008 para o caso da economia americana, uma lição que não foi aprendida nos anos 30, época da Grande Depressão.
Assim como em 2009 e 2010, a resposta do Presidente Roosevelt à crise de 1929 (ainda que tardia) foi de estimular a economia por meio do aumento dos gastos públicos e de resgatar os bancos que haviam sofrido as consequências do grande crash da bolsa de valores. Os efeitos do New Deal começaram a despontar em 1934, e, entre esse ano e 1938, a economia americana cresceu e a taxa de desemprego caiu. O processo de retomada da atividade foi interrompido em meados de 1937 e, em 1938, ano de eleições na Câmara e no Senado, os Republicanos reconquistaram alguns dos assentos perdidos nos anos anteriores. O partido de oposição, representado pelo líder do comitê orçamentário da Câmara (o “House Ways and Means Committee”), Robert Doughton, acreditava que os gastos do governo estavam fora de controle e que a dívida acumulada nos anos anteriores tinha de ser refreada. A recessão de 1937-38 permitiu que os oposicionistas despontassem, ao abalar a ideia de que as políticas expansionistas de Roosevelt bastariam para garantir a continuidade da recuperação. O panorama político que começava a se polarizar, entretanto, mudou com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Em 1941, quando os EUA entraram no conflito, a Depressão acabou. Com ela, foi-se a fragmentação que se prenunciava e os temores em relação ao aumento da dívida. Afinal, as guerras sempre foram o melhor motivo para que os governos sustentassem dívidas insustentáveis.
Nos anos 30, o desemprego nos EUA alcançou mais de 20%. Não foi assim depois de 2008. Todavia, os dados americanos revelam que se somarmos, hoje, os desalentados – aqueles que saíram do mercado de trabalho, e das estatísticas de desemprego, por não encontrar emprego –, os subempregados e os desempregados, há 14% da força de trabalho em condições precárias. O grau de insatisfação, portanto, ainda é muito alto, passados cinco anos da crise.
As condições precárias de trabalho, associadas ao envelhecimento da população americana e à incapacidade do Estado de acolher esses indivíduos com benefícios generosos, diante da sobrecarga nas contas públicas, aumenta o esgarçamento social. Uma das consequências do esgarçamento social é o surgimento de grupos extremistas, como o Tea Party, que quase conseguiu provocar a primeira moratória dos EUA na semana passada.
O desgaste institucional americano, que o mundo não viu nos anos 30, tem conseqüências nefastas para a economia e para a geopolítica global. Enrascados com as brigas internas que assolam o país, os americanos se isolam. Não são capazes de levar adiante os planos de integrar-se comercialmente com a Ásia ex-China. Desconfiada, a Ásia ex-China se volta para a China. E países altamente instáveis, como a Coreia do Norte, passam a ver os EUA não como um inimigo a ser temido, o que refrearia seus piores instintos, mas como um país à deriva, que não conseguiu sequer fazer jus às suas palavras no conflito da Síria.
Os EUA são, ainda, a maior economia do planeta, um país que goza de um setor privado e, sobretudo, de mercados de bens e serviços e de trabalho muito dinâmicos e flexíveis, capazes de se autossustentar, a despeito das guerras travadas em Washington. Mas é preciso derrubar a falsa impressão de que o que se passa na política americana hoje é apenas uma pedra no percurso, nada mais do que um embate passageiro que não deixará sequelas profundas. Acreditar nisso é incorrer no erro do preguiçoso de Cyril Connolly, na tentação de agir conforme as reflexões de segunda mão. O risco é não perceber o Buraco Negro de Calcutá. Afinal, os que falam, não sabem.
Fonte: Instituto de Estudos de Politica Econômica - Casa das Graças
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