Com as democracias industriais do mundo em crise despontam duas narrativas concorrentes sobre suas causas. O primeiro e mais conhecido diagnóstico é o de que a demanda desmoronou, derrubada pelas altas dívidas acumuladas no período prévio à crise. As famílias (e países) que se mostraram mais propensas a gastar não conseguiram mais fazer captações de empréstimos. Para reanimar o crescimento, outros precisam se encorajados a gastar - os governos que ainda podem captar deveriam ter déficits maiores e taxas de juros baixíssimas, deveriam desencorajar a poupança das famílias mais afeitas a economizar.
Sob tais circunstâncias, a imprudência orçamentária é uma virtude, pelo menos no curto prazo. No médio prazo, uma vez que o crescimento se recupere, as dívidas podem ser saldadas e o setor financeiro pode ser refreado, para que não provoque outra crise no mundo.
Essa narrativa - da linha padrão keynesiana, modificada pela crise da dívida - é a que arregimenta mais autoridades de governos e bancos centrais e economistas de Wall Street, e não precisa ser muito mais elaborada. Sua vantagem é dar às autoridades algo claro a fazer e trazer a promessa de retornos adequados ao ciclo político. Infelizmente, apesar dos estímulos já realizados, o crescimento ainda é moderado e está cada vez mais difícil encontrar novos gastos sensatos que possam surtir efeito no curto prazo.
As atenções, portanto, voltam-se à segunda narrativa, a de que a capacidade básica das economias avançadas para crescer por meio de ações úteis está em queda há décadas, uma tendência que era mascarada por gastos sustentados por dívidas.
A segunda narrativa começa nos anos 50 e 60, um período de alto crescimento econômico no Ocidente e Japão. Vários fatores - como a reconstrução do pós-guerra, o ressurgimento do comércio exterior depois do protecionismo da década de 30, a introdução de novas tecnologias de energia, transporte e comunicações pelo mundo e a expansão do nível de instrução - sustentaram essa onda de expansão. Como Tyler Cowen argumenta em seu livro "The Great Stagnation", no entanto, uma vez que esses "frutos nos galhos mais baixos" foram colhidos, tornou-se mais difícil impulsionar o crescimento depois dos anos 70.
Enquanto isso, como Wolfgang Streeck escreve de forma persuasiva na "New Left Review", os governos democráticos ampliaram rapidamente o Estado de bem-estar social. Quando o crescimento titubeou, o resultado foi que os gastos do governo cresceram, mesmo diante do encolhimento dos recursos. Por algum tempo, os bancos centrais acomodaram esses gastos. A alta inflação resultante criou descontentamento generalizado, especialmente porque houve baixo crescimento. A fé nos estímulos keynesianos diminuiu, embora a inflação elevada tenha contido o nível de endividamento público.
Os bancos centrais, então, começaram a concentrar-se em uma inflação baixa e estável como principal objetivo e se tornaram mais independentes de seus mestres políticos. Os déficits nos gastos dos governos, contudo, continuaram acelerados e a dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) aumentou de forma constante nos países industriais a partir do fim da década de 70, desta vez sem inflação para restringir seu valor real.
Percebendo a necessidade de encontrar novas fontes de crescimento, os Estados Unidos, perto do fim da presidência de Jimmy Carter e, depois, sob o governo de Ronald Regan, desregulamentaram os setores financeiro e industrial, como Margaret Thatcher fez no Reino Unido. O crescimento da produtividade acelerou-se de forma substancial nesses países, o que persuadiu a Europa continental a adotar suas próprias reformas, frequentemente promovidas pela Comissão Europeia.
A fase mais recente da busca frenética das economias avançadas por crescimento assumiu diferentes formas. Em alguns países, mais notavelmente nos EUA, a forte alta do crédito para o setor privado criou empregos em setores de baixa capacitação de mão de obra, como o de construção, e precipitou uma disparada do consumo, com as pessoas captando dinheiro com suas casas sobrevalorizadas como garantia. Em outros países, como a Grécia, assim como na Itália e Espanha, uma onda de contratações liderada pelos governos assegurou empregos para as pessoas com nível de instrução moderado.
Nessa narrativa "dos fundamentos", o PIB pré-crise dos países avançados era insustentável, já que se apoiava em captações de empréstimos e em empregos improdutivos e pouco úteis à economia como um todo. "Tomar emprestado" mais crescimento - como na narrativa keynesiana - pode criar a ilusão de normalidade e pode ser útil na sequência imediata de uma crise profunda, como forma de acalmar o pânico, mas não é solução para um problema nos fundamentos do crescimento.
Se esse diagnóstico estiver correto, os países avançados precisam concentrar-se em revigorar o crescimento da inovação e da produtividade no médio prazo e em realinhar as promessas de bem-estar social com a capacidade de arrecadação, enquanto aliviam o sofrimento dos realmente destituídos no curto prazo.
Nos EUA, é imperativo aperfeiçoar a correspondência entre possíveis empregos e capacitação da mão de obra. As pessoas compreendem melhor que o governo o que precisam e agem dessa forma. Muitas mulheres, por exemplo, vêm deixando empregos de baixos salários e adquirindo habilidades que lhes abrirão portas para cargos com melhor remuneração.
A esperança é que três forças poderosas ajudem a criar mais empregos produtivos no futuro: o melhor uso da tecnologia da informação e das comunicações (e novas formas de fazer essa tecnologia render), energia de custo mais baixo e a alta na demanda em países emergentes por bens de maior valor agregado.
Os países avançados têm escolha. Podem agir como se tudo estivesse bem, a não ser porque seus consumidores estão amedrontados e os "espíritos animais" precisam ser reanimados via estímulos. Ou podem tratar a crise como um alerta para consertar o que o endividamento escondeu nas últimas décadas. Para melhor ou para pior, a narrativa que persuadir os governos e populações desses países determinará seu futuro - e o da economia mundial. (Tradução de Sabino Ahumada)
Raghuram Rajan é professor de finanças na Booth School of Business, da University of Chicago, e autor de "Fault Lines: How Hidden Fractures Still Threaten the World Economy". Copyright: Project Syndicate, 2012.
Fonte: Valor Econômico
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