Passados dois anos da crise, o sistema financeiro brasileiro continua muito bem.
Por Jorge Sant'Anna
01/11/2010
Há dois anos podíamos perceber a formação de uma tempestade sem precedentes em Wall Street, centro nervoso do mercado financeiro mundial. Os sinais de desequilíbrio e de uma catástrofe iminente se intensificavam nos radares dos especialistas. Finalmente, em setembro de 2008, o impensável aconteceu, veio ao chão o gigante Lehman Brothers. Junto com ele foram varridos do mapa da elite financeira, ao menos da maneira como conhecíamos, ícones como: Merrill Lynch, Washington Mutual, AIG, Bear Stearns, Wachovia, Fannie Mae e Freddie Mac entre outros.
No Brasil, um dos principais efeitos de tais acontecimentos foi o deslocamento imediato do mercado de câmbio. O dólar, que seguia por meses com baixíssima volatilidade, em torno de R$ 1,60, subitamente disparou atingindo o pico de R$ 2,50 nos meses subsequentes. Tal desequilíbrio desorganizou, embora momentaneamente, a lógica das operações de proteção, via derivativos, realizadas entre empresas e bancos.
Tanto o ambiente de bolsa como o de balcão, onde as negociações são bilaterais, houve intensa necessidade de ajustes de forma a reduzir o risco de contraparte. Em bolsa, isso ocorreu via alteração do patamar de ajustes diários; e, em balcão, via verificações, espécie de ajuste contratual definidos entre os bancos e seus clientes.
Algumas grandes empresas haviam avançado muito além das operações de hedge propriamente ditas e se alavancaram de forma insustentável no novo cenário. Na esteira do pânico criado pela divulgação dos imensos problemas que enfrentavam essas empresas, dezenas de outras, menores, passaram a alegar que os contratos firmados com os bancos em um momento de baixa volatilidade haviam se tornado inviáveis. Não fosse o movimento firme e determinado do Banco Central (BC), o fantasma do rompimento unilateral de contratos teria colocado por terra anos de desenvolvimento institucional. Todo esse debate no Brasil foi perigosamente impulsionado pelos acontecimentos nos EUA.
A despeito de os veículos de securitização de créditos duvidosos terem sido os principais instrumentos de disseminação da crise, um tipo especial de derivativos, os de crédito, foram largamente utilizados como suporte dessas operações. Impactados pela crise, eminentes políticos americanos iniciaram uma cruzada de demonização dos derivativos de balcão, não negociados em bolsa. Na verdade uma simplificação do problema, uma vez que os derivativos de crédito constituíam apenas uma parte menor do total do valor dos derivativos de balcão no mundo à época. (Volume total de derivativos de balcão em julho de 2008: US$ 684 trilhões em comparação com algo em torno de US$ 57 trilhões de "credit defaul swap").
Ocorre que na Europa e Estados Unidos, diferentemente do Brasil, os derivativos de balcão são contratos bilaterais, sem nenhum tipo de registro centralizado e em muitos casos não se subordinavam a nenhum tipo de regulação.
Dois anos depois, para decepção daqueles que previam o caos, o sistema financeiro brasileiro está bem. A exigência de registro de todas as operações entre bancos e seus clientes em ambiente autorizado pelo BC, BM&FBovespa e Cetip, provou-se extremamente benéfica, trazendo alto grau de transparência e sobretudo resiliência ao sistema como um todo. Vale mencionar que a primeira resolução exigindo o registro data de 1994, portanto muito a frente do mercado internacional.
Ainda assim o mercado não parou. Buscando diminuir as brechas existentes nos derivativos diretamente contratados no exterior, O Banco Central produziu três normas importantes em tempo mínimo - Circular 3.474 e as Resoluções 3.824 e 3.833. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou a Instrução 475 aprimorando a apresentação de informações sobre instrumentos financeiros por parte das empresas. E, no âmbito da Febraban, um grupo de profissionais, entre os quais me incluo, conceberam e implementaram a Central de Exposição de Derivativos (CED), algo ainda hoje impensável nos Estado Unidos e Europa.
Nos Estados Unidos, onde desde a crise a tendência é de forçar a migração de todos derivativos de balcão para o ambiente de bolsa, o presidente Obama só conseguiu aprovar a proposta de reforma do sistema financeiro - Dodd-Frank Act - no último 21 de Julho. O documento preconiza a migração dos derivativos de balcão para o ambiente de bolsas bem como a separação nos bancos de algumas atividades relacionadas com derivativos em empresas afiliadas.
Tal regulação deve ser detalhada até julho de 2011, mas antigas questões permanecem em aberto, tais como que tipo de derivativo pode ser considerado padronizado e, portanto passível de migrar para ambiente de contraparte central? Como deverão ser as plataformas de negociação eletrônicas de derivativos não padronizados? O que caracteriza um swap-dealer e quanto capital será requerido?, para citar apenas algumas questões que têm tirado o sono dos legisladores nos últimos dois anos.
Na Europa, por sua vez, um grupo de multinacionais alertou a Comissão Europeia quanto aos riscos da padronização dos derivativos de balcão e da exigência de sua negociação via centrais contrapartes. Além da falta de customização necessária em operações complexas, a gestão de caixa das empresas seria comprometida pela necessidade dos ajustes e margens diárias inerentes a uma operação de uma entidade de contraparte central. No extremo, o comprometimento do capital de giro pode prejudicar a própria capacidade de investimento produtivo das empresas.
De qualquer forma, enquanto os números voltam a crescer - o valor de derivativos de balcão no mundo alcançou o patamar pré-crise em julho de 2009, com US$ 614 trilhões - ficamos cada vez mais distantes de uma regulação global, capaz de evitar arbitragens regulatórias e aumentar a transparência dos mercados.
No Brasil, temos que evoluir, principalmente no que diz respeito à capacitação dos profissionais em empresas não financeiras e aprimoramento dos processos de governança corporativa, mas não podemos deixar de mencionar o elevado grau de maturidade dos agentes participantes do mercado financeiro, que em meio a mais severa crise dos últimos 50 anos, foram capazes de engendrar soluções tão inovadoras como a Central de Exposição de Derivativos.
Jorge Sant'Anna é "head" de reengenharia do Citi e ex-diretor superintendente da Cetip.
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